É a educação, ministro!
Muniz Sodre

Simbologia. Os protestos são, no fundo, uma demanda por diálogo público. Foto: Gustavo Moreno/D. A. Press
 
Greve de professor é mesmo greve? A quem se dispuser a refletir sobre
 a questão, é aconselhável pesquisar o pragmatismo americano, que 
atribui grande importância à terminologia como vetor de consolidação ou 
de mudança ideológica na vida social. Veja-se 
greve: no 
contexto semântico do neoliberalismo e na mentalidade seduzida pelo 
“capitalismo cognitivo”, registra-se uma tendência nada sutil para 
expurgar da História contemporânea essa palavra.
Primeiro, argumenta-se que, para determinadas atividades, como a 
educação, não “existe” greve porque a interrupção do trabalho não 
prejudicaria realmente o empregador. Segundo, no caso do operariado, a 
greve prejudica a produção, sim, mas seria um instrumento típico do 
regime fordista de trabalho, logo, anacrônico. A falácia desse tipo de 
argumentação está em supor a universalidade de categorias hipermodernas,
 como o “capital humano” (a criação de valor não pela força de trabalho 
externa ao trabalhador, e sim pelo seu saber vivo, dito “imaterial”), 
fruto do capitalismo cognitivo, supostamente emergente e virtuoso em todos os rincões do planeta.
Nada disso é falso, mas tudo isso, colocado apenas 
dessa maneira, esconde alguns fatos importantes. Por exemplo, o capital 
dito humano mantém a sociedade dependente da “velha” produção material 
e, não raro, em regimes historicamente regressivos. Outro: a 
flexibilidade do contrato de trabalho, um dos aspectos emergentes desse 
processo, contribui para que empresa e produção de 
riquezas deixem de ser mediadas pelas formas clássicas de trabalho.
A greve é um mecanismo clássico de luta operária, porém, o seu 
sentido vem sendo reposto na História pelos movimentos sociais em prol 
não apenas dos direitos trabalhistas, mas também dos direitos civis e 
dos direitos sociais (educação, saúde). A própria legislação 
(Consolidação das Leis do Trabalho) reconhece que a palavra greve 
refere-se, por extensão, à interrupção coletiva e voluntária de qualquer
 atividade, remunerada ou não, para protestar contra algo. Nada impede 
que se faça greve até mesmo pelo direito de 
trabalhar, quando essa atividade estiver ameaçada em sua dignidade ou na possibilidade de sua continuação.
A greve atual dos professores das universidades federais, com quase 
três meses de duração, insere-se nesse quadro amplo, de muitos aspectos.
 Comecemos pelo aspecto macroeconômico. Um estudo da Fundação Getulio 
Vargas mostra que um dos fatores para a atual ascensão da baixa classe 
média foi a universalização do ensino fundamental a partir dos anos 
1990. Estima-se que a continuidade da mobilidade social dependerá do 
cumprimento das metas de educação.
O problema é que a educação comparece no discurso 
oficial como uma reles peça orçamentária, mensurável apenas por 
estatísticas de matrículas, avaliações e recursos. Deixa-se de lado o 
essencial em todo e qualquer processo educacional, ou seja, o professor e
 seus históricos 
fronts republicanos – cultura, pedagogia e 
democracia. Sem a formulação de projetos político-pedagógicos em níveis 
nacionais, vê-se prosperar uma subcultura avaliativa, decorrência lógica
 da presença de tecnoburocratas, em vez de pedagogos e pensadores, na 
esfera clássica da educação.
É essa subcultura, aliás, que alimenta as organizações internacionais
 (OCDE, Banco Mundial, Comissão Europeia) empenhadas na constituição de 
um mercado mundial da educação. Ainda assim, o discurso globalista 
consegue estar à frente da parolagem governamental, onde a palavra 
educação circula como um fetiche economicista. Mesmo apoiado no limitado
 escopo empresarial do capital humano, o discurso globalista não abre 
mão da valorização do professor.
A valorização republicana do professor dá-se pelo reconhecimento 
público de sua estabilidade institucional no quadro do Estado. Este é o 
ponto central do movimento grevista em curso: um novo plano de carreira e
 um salário sem os “penduricalhos” instáveis, obtidos ao longo de anos 
de lutas. O reajuste salarial está atrelado a esse plano, 
sintomaticamente rejeitado pelo atual governo: “A reestruturação das 
carreiras já ocorreu no governo Lula e agora mudou a política, numa 
situação agravada pela crise”.
Mas que mudança política? Que crise? Que agravamento? Estas palavras 
não aparecem nos discursos oficiais sobre os preparativos para a Copa do
 Mundo ou para as Olimpíadas. Num país que dispõe (neste mês de agosto) 
de 376 bilhões de dólares em reservas, paga em dia a dívida externa e é 
credor do Fundo Monetário Internacional, não se podem invocar os álibis 
da crise mundial e seu agravamento, mesmo com a redução do PIB.
Não se trata realmente de falta de fundos, mas de falta do bom-senso 
necessário a uma mudança de mentalidade em favor da ampliação das 
políticas sociais, com vistas à transformação da educação e da saúde 
públicas. O cuidado é outro, como reverbera o ministro da 
Secretaria-Geral da Presidência, Gilberto Carvalho: “Temos de nos 
preocupar muito com o emprego daqueles que não têm estabilidade. Então, 
toda a nossa sobra fiscal estamos procurando empregar para estimular a 
indústria, a agricultura, o comércio e os serviços, porque esses nos 
preocupam mais”.
Em outras palavras, a iniciativa privada gera riqueza, logo, paga 
impostos que arcam com o custo das políticas sociais. Isto é o que a 
retórica chama de “paralogismo da indução defeituosa”, e nós chamamos de
 pérola da simplificação neoliberal. Defeito: o porta-voz deixa de dizer
 que, quando uma empresa qualquer contrata um profissional qualificado, 
está incorporando um “ativo” que custou anos de “ativos” familiares ou 
estatais para a sua formação. Onde o neoliberal diz “custo” leia-se 
“investimento em infraestrutura”. A terminologia proativa explica: “É a 
educação, Carvalho!”
“Mas temos todo o respeito pelos servidores”, 
ressalvou o ministro. Por que então não dialogar com todos os seus 
órgãos de classe? Respeitar é não discriminar. O plano de carreira, por 
exemplo, é matéria controvertida entre os próprios professores: tem 
laivos corporativistas, passa ao largo do problema da padronização 
salarial que impede a contratação de cérebros estrangeiros. Greve é hoje
 demanda de diálogo público. Mas no vazio da representatividade inexiste
 diálogo, já que voz nenhuma se reproduz no vácuo.
Por tudo isso, no momento em que o fantasma do neoliberal Milton 
Friedman reaparece nos jornais, é admissível pensar que esta greve dos 
professores universitários tem algo de pedagógico numa sociedade de 
fraca participação coletiva, mobilizada apenas pela novela das 8: uma 
aula pública de indignação diante da hipocrisia oficial para com a 
educação e um apelo à mobilização da sociedade como um todo.
*Professor emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro e escritor.